A noite fora maravilhosa. Não havia mais expectativas – o sexo se tornara agora íntimo, como tudo o que os rodeava. Estavam profundamente envolvidos, a essa altura. O amor tinha cruzado o limite de ser um abraço curto pra não sufocar. Cruzou a tênue linha rindo diabolicamente e olhando para trás. Por isso, ela o fez com enorme pesar no coração – aquela angústia que faz o coração parecer minúsculo. “É preciso”, ela pensava, tentando se convencer de que realmente o era. Seu coração pedia que parasse, mas ela, que nunca o havia dado muita atenção, continuava calando-o num gesto de desespero semi-consciente. Assim, lançou um último e demorado olhar naquele com quem havia compartilhado os últimos meses. Estava ali, adormecido, inocente da surpresa que o aguardava pela manhã, quando acordasse com sono e sem vontade de acordar, depois de todo aquele sussurro misturado com suor. Sentada na beirada da cama, ao lado dele, ela fotografava com os olhos o abajour no criado-mudo, que continuava com a luz baixa, ambiente, iluminando fracamente as duas taças de vinho tinto não terminadas, uma ponta de baseado, e as várias latinhas de cerveja cheias de bituca de filtro vermelho em cima da mesa ao lado. O som velho continuava a repetir o mesmo CD que estava lá dentro há horas, tocando aquele velho blues. Haviam rendido na noite. Ela que, secretamente, se despedia. Ele que, inocentemente, se entregava. Virou-se pro lado e deu-lhe um último olhar de perto, mirando diretamente aquela pinta no queixo que ela tanto gostava. Levantou-se, vestiu o sutiã de qualquer jeito, com uma alça meio torcida, pegou a calcinha que até então estivera jogada na poltrona, colocou o vestido preto curto de últimas-noites e pegou a bolsinha que estava jogada embaixo da bermuda dele, já amarrotada. Tirou de dentro uma caneta que colocara ali estrategicamente na véspera, junto com um pedaço de papel azul, e escreveu, com seus garranchos: “Chuchu, vou me mandar. É, eu vou pra Bahia, talvez volte qualquer dia. O certo é que eu to vivendo, eu to tentando... Nosso amor foi um engano”. Deixou no criado, ao lado do cinzeiro, esperando que a ponta do baseado pudesse ajudá-lo, quem sabe. Pegou os sapatos de salto um tanto gastos e saiu, sem qualquer barulho. Fechou a porta atrás de si e ergueu a cabeça, na direção do fim do velho corredor de tapete puído, onde a janela iluminou, com o sol recém-nascido, sua gloriosa maquiagem dormida e o resto de perfume misturado com álcool e maconha que exalavam da pele e dos cabelos, ainda desgrenhados pela noite. Colocou a mão no peito esquerdo, enquanto mirava pela última vez a maçaneta daquele quarto já tão conhecido, mais até do que pretendia. Queria entender, afogada em todo aquele medo, como podia ser tão demente, inconseqüente, porra louca e ainda amar... E assim, não querendo ser incomodada novamente com aquele tipo de pensamento, saiu para a luz do dia, assistindo a toda aquela correria já àquela hora da manhã, com os sapatos ainda dependurados na mão – ônibus que vão e vêm de todos os lugares, homens e mulheres apressados que poderiam ser várias experiências... aquele velho e promissor mundo que não havia mudado, apesar da dor que sentia secretamente.
(Fiz uma história pra música do Cazuza.)
(Mariana P.)
Algumas musicas parecem mais histórias sendo contadas do que só algumas palavras ritmadas.
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