quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Máquina de escrever

Ele era um escritor renomado e respeitado dentro do seu meio social. Andava sempre com um chapéu na cabeça e um caderno de baixo do braço. Procurava sempre uma cafeteria na qual pudesse sentar e ver as vidas alheias passarem, tomando um capuccino e escrevendo sobre aquilo que via.
O consideravam uma máquina de escrever, lançava livros em uma velocidade descomunal, suas histórias eram tão intrigantes que viciavam seus leitores de uma forma inexplicável. Seus poemas descreviam a paixão de uma forma tão intensa e inimaginável, que eram praticamente proibidos para as jovens que descobriam o amor e para aquelas mulheres que sofriam por um desamor.
Seu sucesso era implacável. Nem ele mesmo, a própria máquina de escrever, conseguia compreender como conseguia entrar tão intensamente dentro da mente de cada leitor. Achava aquilo esplendido, se sentia quase completamente realizado. Só não entendia, ainda, o porquê da rejeição interna pela felicidade plena, achava que não precisava de mais nada para ser feliz, mas não se sentia completo - inteiro por dentro e por fora.
Começou então a questionar sua forma de viver, queria descobrir uma fórmula para não sofrer sem saber o motivo. Por dias, semanas, meses, largou seu caderno de lado. Havia entrado em depressão por não saber o motivo de tanta solidão.
As pessoas não o viam mais na rua. Deixou de ser freguês assíduo do aconchego das cafeterias locais. Todos se perguntavam por que a máquina de escrever, não lhes dava mais o prazer de criar coisas para lerem.
Em um dia chuvoso, desses que só se pensa em ficar em casa de baixo das cobertas, assistindo aquilo que estiver passando na televisão até cair no sono, ele escuta baterem em sua porta. Preferiu fingir que não estava em casa, não queria que incomodassem a sua solidão. Mas as batidas continuaram e cada vez mais insistentes e desesperadas. Ele começou a ficar inquieto. De repente uma voz surge do outro lado daquela madeira velha que ele insistia em chamar de porta.
- Eu sei que o senhor está ai. E acho bom abrir essa porta porque estou ficando encharcada pela chuva.
Ele deu um pulo no sofá. Sabia quem estava a perturbar seus pensamentos melancólicos. A voz era doce e suave, mas ao mesmo tempo, decidida. Era a dona de sua cafeteria/livraria preferida. Uma jovem, de uns 20 e poucos anos, que resolveu se aventurar em meio ao pó dos cafés e dos livros. Ela não sabia, mas em seus últimos escritos, ela era sua inspiração.
Permaneceu ainda um tempo sentando no sofá, sem saber muito como reagir àquela situação. Outra batida acompanhada de mais uma afirmação o tirou de seus pensamentos.
- Ande logo, Pedro. Quer que eu pegue uma gripe? Pelo amor de Deus, estou congelando aqui.
Levantou com um pulo e correu em direção à porta. Ao tentar abri-la foi um pouco desajeitado, há tanto tempo que não saia de casa que a porta havia começado a emperrar. Quando finalmente a abriu, viu uma morena que tagarelava sobre o tempo, entrando em sua casa e lhe dando um sermão por ter demorado a atendê-la. Ela foi direito para a cozinha, largou seu guarda chuva, que inutilmente usou para escapar da tempestade. Pingando casa adentro, saiu à procura de uma toalha para secar os cabelos e tentar evitar que molhassem mais ainda o assoalho de madeira.
Quando finalmente parou de rodopiar para todos os cantos, voltou à sala e o encontrou parado em frente à porta, que ainda estava entre aberta.
- Nossa, mas o que houve com você? Está com cara de doente. E porque ainda não fechou essa porta, meu Deus?! Esse vento vai trazer a chuva toda para dentro da casa.
Tereza foi em direção à porta e a fechou, com um pouco de dificuldade devido ao seu pouco uso nos últimos tempos. Ele continuou com uma cara de interrogação, há tanto tempo não tinha uma conversa descente com alguém, que não conseguiu perguntá-la o que a levava até sua casa. Mas nem foi preciso, ela respondeu, sem mesmo ele precisar perguntar.
- Você deve estar se perguntando o que eu estou fazendo aqui, não é? Pois bem, a resposta é muito simples, porque você sumiu da minha cafeteria e me deixou maluca com o tanto de freguês me perguntando a onde você estava. Fui obrigada a vim averiguar a situação crítica que te fez sumir dos cafés e dos cadernos.
Ela ficou um tempo olhando para ele esperando uma resposta. Ele não compreendia o motivo do silêncio, ainda estava assimilando o motivo da visita inesperada.
- Então... – Perguntou Tereza ainda esperando uma resposta plausível para tal desaparecimento inoportuno.
Saindo de seu estado de alfa mental, começou a andar pela casa, tentando deixa-la com uma cara menos bagunçada, e gaguejando, tentando explicar a mentira de que andava muito ocupado com o trabalho.
- Não minta para mim, Pedro. Seu trabalho nunca foi dentro de casa, porque agora haveria de ser? Você está com uma cara muito cansada... Vou lhe fazer um chá.
E lá foi Tereza a caminho da cozinha, como se estivesse em sua própria casa. Começou a fuçar todos os armários a procura de panelas e xícaras. Pedro voltou a sentar no sofá, estava tão assustado que não sabia como reagir àquela presença. Aos poucos foi pensando em como sentiu falta de Tereza nesses tempos de reclusão social, em como mesmo ensopada pela chuva, seus cabelos ainda cheiravam a flor de lírio.
Seu chá estava forte, mas tão delicioso que parecia que trazia o conforto do calor de volta para as veias dele. Foram goles quentes revigorantes.
- Ahh... Era tudo o que eu precisava depois desse banho de chuva que peguei. Se não se importa, vou tirar meus sapatos.
Tereza tinha uma forma de se vestir muito curiosa e peculiar. Estava com um vestido azul escuro, longo, que não era nem justo e nem muito largo, mas ideal para perceber que Tereza tinha curtas que deixavam qualquer homem intrigado para conhecê-las. Seus pés calçavam umas botas, que mais pareciam botinas para chuva. Para as mulheres preocupadas com moda, ela seria daquelas consideradas ‘sem estilo’, mas que na verdade, ela tinha mais estilo do que aquelas que seguiam as tendências.
- E ai, Pedro, vai me contar ou não o que está acontecendo com a máquina de escrever? – Perguntou Tereza se sentando agora ao lado dele no sofá.
Alguns segundos desconcertantes cortavam a voz dele, não sabia o que responder.
- Bom, tudo bem, você não precisa me contar o que está acontecendo, mas tem que me prometer que vai voltar para a cafeteria. Combinado?
Ele balançou a cabeça em sinal afirmativo e forçou um sorriso amarelo.
Ela sorriu para ele e se despediu com um beijo quente em seu rosto. Então saiu pela porta pesada, largando para trás sua espécie de botina e o guarda chuva. Pedro tentou avisá-la do seu esquecimento, mas quando chegou até a porta, Tereza sumia pela esquina dançando na chuva. Aquela imagem deixou Pedro vidrado em Tereza, era uma mistura de sensualidade com diversão de menina. Uma sensação estranha surgia dentro dele, não conseguia compreender bem do que se tratava, só sabia que a única coisa que queria era sair correndo pela chuva e pedir permissão para participar daquela valsa das águas.
A noite passou em claro para ele. Rolando pela cama, só conseguia pensar que queria sentir o gosto daquele chá novamente, mas pelos lábios de Tereza. Cansado de lutar contra a insônia, resolveu se render à escrita. Após um bom tempo sem pegar em uma caneta, sentou-se na escrivaninha e deixou sua mente fluir. Foi colocando no papel toda aquela sensação sufocante de gritar por Tereza. Sabia falar apenas através da caneta e do papel. Escreveu a noite inteira, poemas e mais poemas.
Pela manhã, tomou um banho, fez a barba, colocou uma roupa casual, mas que o deixasse bem vestido. Apesar de ter passado a noite em claro, sentia-se mais descansado do que nunca. Sentou novamente em sua escrivaninha e escolheu entre os milhares de poemas que escreveu, o mais conveniente para a situação. Pegou uma sacola e guardou as botinas e o guarda chuva de Tereza. Saiu de casa com passos apertados em direção à cafeteria.
Mal conseguiu terminar de subir as escadas do café, e Tereza apareceu sorridente e com seu rotineiro e estonteante cheiro de lírios, falando na velocidade da luz. Antes mesmo de escolher uma mesa para se sentar, ela já o conduzira para sua mesa habitual, informando que este café seria por conta da casa, em agradecimento pela sua vinda.
Tereza trouxe o de sempre, capuccino com dois pães de queijo, o preferido de Pedro. Junto com o café da manhã, veio algo esporádico, um bilhete escrito ‘Obrigada’, borrado com um beijo de batom. Aquela surpresa fez o sangue dele ferver, ficou mais confiante, mas ainda não conseguiria falar com ela pessoalmente.
Ele terminou seu café rapidamente e deixou em cima da mesa uma carta juntamente com a sacola. Saiu antes mesmo que ela pudesse perceber. Ela estava abarrotada de clientes famintos e sofrendo abstinência de café.
Quando pode respirar com calma, ela resolveu ir a mesa dele para conversar um pouco. Mas chegado lá, a surpresa: ele havia indo embora. Por alguns segundos ficou decepcionada, foi até a porta procurando por algum sinal do seu poeta preferido, mas nada. Deu um suspiro triste e foi recolher o prato e a xícara da mesa. Então tomou um susto. Tinha um bilhete na mesa gritando para ser lido, a letra era inconfundível, sabia que era dele.
‘Não sabia como falar pessoalmente, então aqui vão alguns versos singelos.
P.S: Na sacola estão suas botas e seu guarda chuva.
Com carinho,
Pedro.'
Com o coração batendo na boca, ela tirou o outro papel que estava dentro do envelope, tinha presa em ler o que lhe esperava.
‘Não sei muito bem como tudo aconteceu
Sei apenas que um dia meu céu escureceu
Perdi a vontade de escrever
Praticamente minha a vontade de viver
Não sabia mais como fazer o que eu mais amava
Estava perdido em uma tempestade que não acabava
Quando achei que seria levado pela água
Veio alguém e me deu a mão que eu precisava
Me tirou da mágoa que me afogava
Trouxe o calor de volta para o coração
E esse tinha gosto de chá de açafrão
Me deixou meio zonzo com o falatório constante
Mas não queria que ela parasse por nenhum instante
De repente ela se foi dançando pela chuva
Sumiu saltitante em uma curva
Naquela noite não consegui dormir
Tive que me sentar e deixar o lápis fluir
E é por isso que você está lendo este poema
Você fez surgir em mim
Algo que eu só conhecia pelo cinema’
Tereza leu o poema várias vezes, queria acreditar que o que estava lendo não fazia parte de apenas um dos seus sonhos rotineiros. Percebeu que sua paixão não era mais platônica. Pediu então, que um de seus funcionários cuidasse da cafeteria, largou o avental e saiu correndo atrás do que queria.
Começou a bater insistentemente na porta dele. A porta emperrou um pouco, deixando o coração dela mais aflito do que nunca. Finalmente o pesado pedaço de madeira se abriu. Sem pensar duas vezes ela pulou nos braços dele. Desajeitada, pulou tão atordoada que levou Pedro ao chão. Por alguns segundos, se encontram pelo olhar, seguido de sorrisos no rosto e um beijo tão caloroso que faria até inveja nas histórias de amor.

(Mariana Magalhães)

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Conversa de rua, parte I


Vínhamos andando madrugada afora, vagando, na verdade, vagando nas verdades, long necks mornas a postos, e uma conversa digna de cena de Waking Life. Ela, que caminhava ao meu lado não só ali e nem só literalmente, viu de rabo de olho um filete de sangue me escorrendo testa abaixo e já veio me reprimindo, me acusando de ter arrancado a casquinha do meu machucado de novo, “DE NOVO, MARIANA”. Toda aquela intimidade me parecia um pouco assustadora, mas por mim tudo bem. Já que eu abri a greta, melhor escancarar a porta, era o que eu havia concluído sobre aquilo tudo, aquela relação. “Sim. Você sempre se intrigou com a ideia de eu ser assim, meio autodestrutiva. Não precisa fingir horror agora. Aliás, o que isso quer dizer?”, eu indaguei sem muita convicção de que ganharia uma resposta. “Pulsão de morte”, ela respondeu, seca, para minha surpresa. “E o que quer dizer pulsão de morte?”, “Algo do tipo que a energia que te impulsiona, ela te leva pro limite. É limítrofe”. Aquilo só fez um sentido um tanto vago pra minha pobre cabeça de bêbada. “E...?”, tentei entrar no assunto de uma forma que fizesse aquilo parecer um pouco mais real, ou melhor, menos real. Mais palpável, simplesmente. “Você nunca passa dos limites. Só beira. Mas continue arrancando a testa que uma hora você chega no crânio.” Preferi deixar o silêncio tomar a palavra e continuamos vagando por aquelas ruas vazias, frias e tão conhecidas àquela altura. Depois eu pensava a respeito. Se ainda tivesse a testa.

(Mariana Pio)