Era meio-dia e o Sol rachava
as carecas daqueles mais desprovidos de cabelos. Se olhássemos para o final da
rua, era possível ver o calor subindo do asfalto, quase causando uma miragem.
Todos andavam pela rua apressados com a necessidade de fugir do calor de quase
40 graus, com a sensação térmica de quase 50. Há dias não caia uma gota de água
do céu. O azul quase cegava os olhos, não havia uma nuvem sequer para amenizar
a temperatura que fazia na cidade. O verão estava apenas começando e as pessoas
já não viam a hora da chegada do inverno.
Dona Alda era uma senhora
que aparentava ter os seus 70 anos de idade, mas era algo que ficava apenas na
suposição, pois nem a própria Dona Alda sabia realmente quando havia nascido. Ela
não possuía sequer uma carteira de identidade, aliás, nunca teve documento
algum que determinava ao menos qual era o seu nome. Desde que se entende por
gente ela vive nas ruas, sem pai e sem mãe, jamais soube se possuía irmãos. Ela
era uma dessas guerreiras que já havia feito de tudo para conseguir um pão para
se alimentar. Ela era negra, vestia um vestido meio rasgado, mas que era
suficiente para esconder suas partes vergonhosas. O seu cabelo era Black Power,
que já tinham mais fios brancos do que pretos, e, para acompanhar o penteado
natural, ela encaixava um pente aos seus cachos bem definidos. Ela era magra,
altura mediana e andava sem pressa pelas ruas para achar uma pequena sombra
para se aliviar do calor. Assim que encontrou, logo largou suas trouxas de lado
e se sentou no meio fio.
Depois de tantos anos
sobrevivendo sozinha pelas ruas, Dona Alda já havia adquirido o hábito de
conversar consigo mesma em voz alta, não mantinha um pensamento se quer para si
mesma. As pessoas andavam pela rua e a encaravam com facetas assustadas,
provavelmente supondo ser este um hábito de uma pessoa louca. Muitos até
atravessavam a rua para não ter que andar próximos demais àquela velha maluca.
Dona Alda não dava a mínima para esses “enrrustidos”, como ela mesma os
chamava. Apesar de não possuir uma casa, um carro, um emprego para chamar de
seu, Dona Alda sabia que sua liberdade era algo que ninguém poderia tirar dela.
Mais do que qualquer outra pessoa, ela era extremamente segura de si e de sua
vida, não temia nada e nem ninguém.
Após alguns minutos sentada
no meio fio, falando consigo mesma e admirando os engravatados que passavam à
sua frente suarem até a última gota de água que possuíam no corpo, Dona Alda se
levantou calmamente e em menos de 5 segundos, em um movimento único, retirou o
seu vestido, deixando seu corpo nu em pelo, e voltou a se sentar no chão. Neste
momento, Dona Alda cruzou suas pernas magras, encontrou dentro de sua sacola
uns cigarros picados e acendeu um. Recostou um de seus braços para trás,
descansou a mão que segurava o cigarro em seu joelho e continuou a admirar os
loucos da cidade.
Algum tempo depois, começou
a perceber que as pessoas que estavam a sua volta iniciaram uma pequena
aglomeração para escandalizarem sobre a cena que Dona Alda estava causando.
Calmamente, ela se levantou do chão, deu uma longa tragada em seu cigarro,
soltou a fumaça em uma sequência de prazer e disse:
- O que é que foi, gente? Nunca viram muié pelada não, é? – Sua risada em seguida foi histérica.
Uma mulher se aproximou dela
e disse baixinho perto de seu ouvido:
- A senhora precisa se vestir.
Não pode ficar sem roupa pela rua, desse jeito... – olhando Dona Alda de cima a
baixo, limpou sua garganta e continuou – mostrando suas partes íntimas para
todo mundo...
A mulher sequer havia
terminado sua frase, quando Dona Alda logo a interrompeu e, agora, com uma voz
irritadiça e estridente, gritou:
- NESSE CALÔ DU CARALHO, CÊS
ACHAM MEMO QUE EU VÔ FICÁ
COM AS ROPA NO CORPO? EU NUM SÔ LOCA IGUAL A CÊS TUDO
NÃO! QUERO VÊ QUEM VAI ME FAZER COLOCÁ AS ROUPA DE NOVO! QUERO VÊ QUEM É O
DOIDO QUE VAI SE ATREVÊ A TENTÁ! –
Soltou em seguida mais uma risada histérica.
No fundo do aglomerado, que
agora estava maior, surge uma voz masculina:
- Então, vamos ter que
chamar a polícia para prender a senhora! Isso é uma falta de respeito!
Nesse momento, Dona Alda
finalizou o seu cigarro, jogou o toco que sobrara no chão e o apagou com os pés
descalços.
- Ocês acham memo que algum
puliça vai me fazê coloca as ropa no corpo? – sua risada,
neste momento, era mais do que histérica, era assustadora – QUERO VÊ OS HOMI ME MANDAREM BOTÁ AS ROUPA! QUERO VÊ! CHAMA AÍ! CHAMA! QUERO VÊ!
Depois de alguns segundos
rindo em sequência ao seu discurso inquietante, calmamente, Dona Alda sentou-se,
novamente, no meio fio, procurou por mais um de seus cigarros na sacola, o
acendeu em uma tranquilidade perturbante e voltou a fumá-lo em sua posição de
meditação.
As pessoas a sua volta, com
olhares horrorizados cochichavam entre si sobre o tamanho ultraje daquela senhora,
mas sem saberem exatamente o que fazer. Dona Alda não se importou. Continuou a
fumar o seu cigarro e a falar alto consigo mesma. As pessoas extremamente desconfortáveis
e desgostosas com aquelas situação, foram se dispersando, voltando logo aos
seus passos apressados para fugirem do Sol escaldante e aos seus trabalhos
estressantes.
No fundo, todos sabiam que
sua revolta com Dona Alda não era pelo fato dela estar pelada em público, mas
pela falta de coragem que eles possuíam de fazer o mesmo que aquela velha
senhora maluca estava fazendo: expressando o seu livre arbítrio dentro de uma
sociedade tão proibitiva e restritiva aos direitos.
(Mariana Magalhães)