segunda-feira, 20 de abril de 2015

Dona Alda das Ruas

Era meio-dia e o Sol rachava as carecas daqueles mais desprovidos de cabelos. Se olhássemos para o final da rua, era possível ver o calor subindo do asfalto, quase causando uma miragem. Todos andavam pela rua apressados com a necessidade de fugir do calor de quase 40 graus, com a sensação térmica de quase 50. Há dias não caia uma gota de água do céu. O azul quase cegava os olhos, não havia uma nuvem sequer para amenizar a temperatura que fazia na cidade. O verão estava apenas começando e as pessoas já não viam a hora da chegada do inverno.
Dona Alda era uma senhora que aparentava ter os seus 70 anos de idade, mas era algo que ficava apenas na suposição, pois nem a própria Dona Alda sabia realmente quando havia nascido. Ela não possuía sequer uma carteira de identidade, aliás, nunca teve documento algum que determinava ao menos qual era o seu nome. Desde que se entende por gente ela vive nas ruas, sem pai e sem mãe, jamais soube se possuía irmãos. Ela era uma dessas guerreiras que já havia feito de tudo para conseguir um pão para se alimentar. Ela era negra, vestia um vestido meio rasgado, mas que era suficiente para esconder suas partes vergonhosas. O seu cabelo era Black Power, que já tinham mais fios brancos do que pretos, e, para acompanhar o penteado natural, ela encaixava um pente aos seus cachos bem definidos. Ela era magra, altura mediana e andava sem pressa pelas ruas para achar uma pequena sombra para se aliviar do calor. Assim que encontrou, logo largou suas trouxas de lado e se sentou no meio fio.
Depois de tantos anos sobrevivendo sozinha pelas ruas, Dona Alda já havia adquirido o hábito de conversar consigo mesma em voz alta, não mantinha um pensamento se quer para si mesma. As pessoas andavam pela rua e a encaravam com facetas assustadas, provavelmente supondo ser este um hábito de uma pessoa louca. Muitos até atravessavam a rua para não ter que andar próximos demais àquela velha maluca. Dona Alda não dava a mínima para esses “enrrustidos”, como ela mesma os chamava. Apesar de não possuir uma casa, um carro, um emprego para chamar de seu, Dona Alda sabia que sua liberdade era algo que ninguém poderia tirar dela. Mais do que qualquer outra pessoa, ela era extremamente segura de si e de sua vida, não temia nada e nem ninguém.
Após alguns minutos sentada no meio fio, falando consigo mesma e admirando os engravatados que passavam à sua frente suarem até a última gota de água que possuíam no corpo, Dona Alda se levantou calmamente e em menos de 5 segundos, em um movimento único, retirou o seu vestido, deixando seu corpo nu em pelo, e voltou a se sentar no chão. Neste momento, Dona Alda cruzou suas pernas magras, encontrou dentro de sua sacola uns cigarros picados e acendeu um. Recostou um de seus braços para trás, descansou a mão que segurava o cigarro em seu joelho e continuou a admirar os loucos da cidade.
Algum tempo depois, começou a perceber que as pessoas que estavam a sua volta iniciaram uma pequena aglomeração para escandalizarem sobre a cena que Dona Alda estava causando. Calmamente, ela se levantou do chão, deu uma longa tragada em seu cigarro, soltou a fumaça em uma sequência de prazer e disse:
- O que é que foi, gente? Nunca viram muié pelada não, é? – Sua risada em seguida foi histérica.
Uma mulher se aproximou dela e disse baixinho perto de seu ouvido:
- A senhora precisa se vestir. Não pode ficar sem roupa pela rua, desse jeito... – olhando Dona Alda de cima a baixo, limpou sua garganta e continuou – mostrando suas partes íntimas para todo mundo...
A mulher sequer havia terminado sua frase, quando Dona Alda logo a interrompeu e, agora, com uma voz irritadiça e estridente, gritou:
- NESSE CALÔ DU CARALHO, CÊS ACHAM MEMO QUE EU FICÁ COM AS ROPA NO CORPO? EU NUM SÔ LOCA IGUAL A CÊS TUDO NÃO! QUERO VÊ QUEM VAI ME FAZER COLOCÁ AS ROUPA DE NOVO! QUERO VÊ QUEM É O DOIDO QUE VAI SE ATREVÊ A TENTÁ! – Soltou em seguida mais uma risada histérica.
No fundo do aglomerado, que agora estava maior, surge uma voz masculina:
- Então, vamos ter que chamar a polícia para prender a senhora! Isso é uma falta de respeito!
Nesse momento, Dona Alda finalizou o seu cigarro, jogou o toco que sobrara no chão e o apagou com os pés descalços.
- Ocês acham memo que algum puliça vai me fazê coloca as ropa no corpo? – sua risada, neste momento, era mais do que histérica, era assustadora – QUERO VÊ OS HOMI ME MANDAREM BOTÁ AS ROUPA! QUERO VÊ! CHAMA AÍ! CHAMA! QUERO VÊ!
Depois de alguns segundos rindo em sequência ao seu discurso inquietante, calmamente, Dona Alda sentou-se, novamente, no meio fio, procurou por mais um de seus cigarros na sacola, o acendeu em uma tranquilidade perturbante e voltou a fumá-lo em sua posição de meditação.
As pessoas a sua volta, com olhares horrorizados cochichavam entre si sobre o tamanho ultraje daquela senhora, mas sem saberem exatamente o que fazer. Dona Alda não se importou. Continuou a fumar o seu cigarro e a falar alto consigo mesma. As pessoas extremamente desconfortáveis e desgostosas com aquelas situação, foram se dispersando, voltando logo aos seus passos apressados para fugirem do Sol escaldante e aos seus trabalhos estressantes.
No fundo, todos sabiam que sua revolta com Dona Alda não era pelo fato dela estar pelada em público, mas pela falta de coragem que eles possuíam de fazer o mesmo que aquela velha senhora maluca estava fazendo: expressando o seu livre arbítrio dentro de uma sociedade tão proibitiva e restritiva aos direitos.


(Mariana Magalhães)