domingo, 3 de março de 2013

As flores de V.

Vamos chamá-lo de V. V. estava enclausurado há anos, quando morreu. Vivia num antigo manicômio em uma cidadezinha metropolitana. Acho que ele sequer sabia o quanto a metrópole havia crescido desde que fora parar lá. V. me contou que foi preso há muitos anos, mas que foi armação. Que ajudava a descarregar um caminhão de sacos de arroz para um supermercado, e o responsável pela fiscalização ofereceu os três sacos que sobraram a ele, que prontamente aceitou, já que "arroz nunca é demais, né, moça". Daí foi preso. Preso por "furtar" sacos de arroz. "É assim, a gente tem que pagar pra comer, pra morar, até pra trabalhar a gente tem que pagar. Agora estão cobrando pra respirar também, já?", ele me perguntou como quem pergunta algo sobre a vida em Vênus - era uma dúvida verdadeira. Então V. me contou que não queria sair de lá, que lá ele tinha comida e a companhia dos outros loucos ("não sei por que acham isso, loucos são aqueles que colocaram a gente nesse lugar aqui"), além de poder fazer a jardinagem, que ele amava as flores e o jardim, ele acrescentou, me mostrando as mãos sujas de terra, orgulhoso.
V. não tinha família, ou ao menos ninguém sabia nada a seu respeito. Por mais de metade da sua vida, viu pessoas indo e vindo do manicômio, sua casa, amigos que fez lá dentro e assistiu partir, simplesmente desejando sorte.
V. dedicou mais de trinta anos aos jardins de um manicômio, no qual morreu, em uma madrugada de primavera especialmente quente. Os jardins, agora, têm flores não tão bonitas, cuidadas por obrigação. Ninguém sente a falta de V., além das enfermeiras e dos amigos que fez nos últimos tempos, mas que já iam sair e partir para o lado de fora, o considerado "real". Mas aquela era a realidade de V.
V. morreu satisfeito com as centenas de cores que a primavera trouxe às suas flores, suas flores cheirosas, coloridas, bem cuidadas, alegres e trancafiadas.

(Mariana Pio)

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