quinta-feira, 21 de março de 2013

Ana dos Bons Costumes


Era uma vez Ana.

Ana foi criada pelos pais, que morreram casados e infelizes, e que delataram os vizinhos como conspiracionistas, inimigos do Estado, durante a Ditadura Militar no Brasil. Ana tinha um irmão e uma irmã, mas hoje tem apenas um irmão, sobre quem ela só sabe estar vivo, "casado" e criando uma criança que “não é dele” com alguém que “não é pra ele”. O irmão de Ana, Rafael, queria casar-se com Augusto, seu “amigo” da época do ensino médio, e por isso foi-se embora para o sul. A irmã morreu há poucos anos, no pé do morro, vítima de uma bala perdida em uma troca de tiros com a polícia, na qual estava presente pelo simples fato de ter ficado tempo a mais com as criancinhas para as quais ensinava capoeira... A balística comprovou que a bala era da arma de um soldado.

Ana, aos 13 anos, foi a filha que apoiou os pais a delatar os vizinhos. Rafael já estava em vias de fugir com Augusto para a fronteira do Uruguai. A irmã era muito nova e não sabia do que acontecia, mas sempre foi movida pelo sentimento de justiça, até ser assassinada pela injustiça.

Ana casou-se com José Fernando, um rapaz bom, trabalhador, honesto, de família certa, cristão praticante dos bons costumes. Ah, os bons costumes! Tiveram cinco filhos, e nenhum deles foi fruto de um gozo mútuo – já que Ana foi criada nos conformes, de vestido de linho e sapato de vinil, tendo sempre compreendido e introjetado tudo o que lhe fora ensinado. Ana fazia a melhor torta da cidade, e costumava servir uma em casa todo domingo, para o marido e as outras pessoas da família. Ana morreu de uma doença degenerativa, casada e infeliz, porém satisfeita e honrada (segundo seus próprios conceitos), tal qual ensinado pelos pais, nunca tendo experimentado daqueles que creio os maiores prazeres da vida: os gozos, o debate, as idéias, os ideais e a subversão.

(Mariana Pio)

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