segunda-feira, 7 de maio de 2012

Carta do Juiz


Semanas atrás causou repercussão por aí (oh, mídia, sempre tão imparcial!) uma sentença [na íntegra aqui] proferida por um juiz de Divinópolis - MG, cujo caso era a briga de duas mulheres por um "homem" (tenho sérias dúvidas). Questionado sobre tal sentença, o juiz escreveu a seguinte carta, publicada no site do TJMG: 

"Fazer Justiça não é fazer Direito.
Vocês da imprensa me perguntam agora, porque algumas sentenças minhas são
diferentes. Talvez sejam. Vou pensar. Talvez seja porque agora eu tenho    em mim certa
segurança de que fazer Justiça é coisa muito diferente do que o simples fazer Direito. Isso
talvez seja diferente hoje em dia. Vou meditar. Mas ainda assim não compreendo porque
algumas sentenças não podem ser diferentes. Porque eu mesmo não posso ser diferente.
Porque eu tenho que ser igual aos outros, usar cartão de crédito, ter celular, fazer parte de
uma rede social? Minhas sentenças só possuem valor se forem iguais às dos outros? Só vale
chapinha, agora? Eu só tenho valor se usar celular, cartão de crédito e usar essa engenhoca de  
Facebook? Onde está escrito que tenho que ser igual? Não são vocês mesmos que dizem na
televisão a toda hora que “ser diferente é normal”?  
Muitos dizem que Justiça é dar a cada um o que é seu. Bacana isso! Já vi muitos
doutores dizendo isso, até na TV Justiça. Mas não acho isso correto. Direito é dar a cada um o
que é seu. Justiça não é dar a cada um o que é seu. Prá mim, Justiça é muito mais. Se justiça
fosse dar a cada um o que é seu, então, ao desgraçado, quando eu fosse fazer Justiça, em
minhas sentenças, eu só poderia dar desgraça; ao infeliz, a infelicidade, ao desafortunado, a
desfortuna, porque é isso que essa gente tem. Mas não é assim que eu trabalho e penso.
Direito é dar a cada um o que é seu. Justiça não. Quem dá a cada um o que é seu faz Direito.
Pode ou não fazer Justiça. Cada caso é cada caso. Mas Justiça é muito mais. Justiça é colo de
mãe, na mais perfeita definição que já ouvi dela, e isso foi de uma criancinha de 03 anos, pura
e ingênua, dentro de minha própria casa. Quem diria? Depois de ler tantas  obras jurídicas, dos
mais renomados juristas, foi numa criancinha de três anos que encontrei a melhor definição de
Justiça. Justiça é colo de mãe! É Justo:  mãe não dá a cada um dos filhos o que é seu. Isso não.
Mãe se dá por inteiro a todos eles! É assim que é a Justiça, e isso é coisa bem diferente que
Direito.
Talvez seja por isso que algumas sentenças minhas sejam diferentes, para vocês. Vou
pensar.    Talvez porque elas, em algum ponto, se afastem do Direito para fazer Justiça, e,
convenhamos, isso está se tornando coisa difícil hoje em dia. Vou refletir mais sobre isso.
Relativamente ao caso que causou alvoroço da imprensa, não sei o porquê, de um
simples julgamento de briga de duas mulheres, sobre o caso em si não posso mais falar. E nem
quero. Já sentenciei e o destino do caso agora está na Turma Recursal. Já fiz minha parte e
acho que bem feita. Se não estiver, os sobrejuízes decerto saberão corrigir, pois é assim que
funciona no Estado Democrático de Direito. Mas posso falar acerca do meu estilo, que é o que
interessa à imprensa, e porque elaborei aquela sentença, daquela forma. Só estilo pessoal. E
digo: quando acabei de elaborar a sentença, tendo como parâmetro tudo o que havia apurado
na audiência, na peça de defesa e na informação de que a ré havia pagado somente R$300,00
1para se livrar de acusações de três crimes, pensei comigo: esta sentença está correta; fiz
Direitinho meu trabalho. Se o Promotor entendeu que R$300,00 era suficiente para punir
criminalmente quem comete três crimes, um até um pouco mais grave, o valor que eu
encontrei aqui está correto.   Mas foi aí que eu matutei comigo mesmo, pois mineiro é assim,
matutando ele entende melhor as coisas: está Direitinho mas não está Justinho. Apaguei tudo
que havia escrito. Não era Justo. Era Direito, mas não era Justo. Como poderia ser justo se nos
crimes de    manutenção de maritaca (na verdade o nome do bichinho é maitaca e não
maritaca) em cativeiro o próprio Promotor oferece transação de R$1.800,00 e mais
composição civil dos danos ambientais de R$3.000,00 (total R$4.800,00). Liberdade de
maritaca vale sozinha mais que três crimes definidos no Código Penal, contra pessoa? Tá
errado. Apaguei tudo e fiz o que entendi o que era justo, bem ajustado para o caso. Como
poderia estar correta uma sentença que havia analisado tantas teses jurídicas, para um caso
tão singelo de briga de mulher. Não era nem racional, senti que   estava apenas tentando, de
outra forma, explicar física quântica para crianças de três anos.
Apaguei e fiz outra. Esta sim, sem as influências   do tecnicismo ajustado ao Direito,
mas que no caso concreto, estava muito próxima da Justiça. Do que eu entendo de Justiça. É
porque carrego sempre comigo ensinamento de um Mestre dos tempos de escola, livro
fininho; só em dez regrinhas ela condensa tudo o que é de Justiça: “Teu dever é lutar pelo
Direito, mas no dia em que encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça”.
Assim, cada palavrinha,    cada expressão da sentença foi lá colocada    da maneira mais
pertinente, mais ajustadinha possível com o que havia ocorrido na audiência. Para mim, a
sentença não poderia ter cara diferente do processo, pois isso não era Justiça, era hipocrisia
travestida de Direito. Só isso. Utilizar aquelas expressões que eu estava usando na sentença
anterior era pedantismo para com as partes, que nem queriam ouvir nada do Juiz, só queriam
sentença. No final das contas, o que ambas queriam era apenas saber quem ganhou e quem
perdeu. Só isso.   Ninguém estava ali para discutir teses, teses e mais teses; montanhas de
injustiças. Então a sentença não poderia ser outra. Foi aquela que foi.
Tenho visto muito Direito nos processos dos Juizados Especiais. Nas contestações,
principalmente,  quem se der ao trabalho de pesquisar, vai encontrar muito Direito compilado
(teclas copiar e colar, do computador). Outro dia apareceu uma, de 60 páginas, 6 teses só de
preliminares e mais um tantão delas de mérito: o valor da causa era de R$0,06 (seis centavos
de Real). O advogado gastou mais natureza para contestar o pedido do que o próprio valor da
causa. É Direito. Não é Justo. Mas quem se importa com valores hoje em dia? Há algum tempo
atrás, uma advogada até colocou o dedo em riste dizendo que estava se lixando para as
minhas sentenças, porque ela já sabia o que eu pensava sobre o caso que ela estava
defendendo. Era um simples processo de cobrança de telessexo em conta de telefone, cujo
valor não chegava a R$10,00, mas a advogada, com sua preposta, não queria nem participar da
sessão de conciliação, alegava que já sabia mesmo qual seria a sentença, pois já conhecia o
meu pensamento sobre tais cobranças e não queria participar da sessão. Não permiti. Está na
Lei que ela deveria participar, sob pena de revelia. Ela disse que iria até o Supremo, ainda que
o valor da causa fosse R$0,01, mas ela não deixaria de utilizar de todos os instrumentos legais
para não permitir a procedência da causa. Só se interessava pelo Direito. A tese dela era a de
2que, como o Jornal O Estado de Minas favorecia a prostituição abertamente em suas páginas
de classificados (e isso é verdade!), inclusive com a anuência do Ministério Público, que havia
firmado com o Jornal um Termo de Ajustamento de Conduta (também verdade!),   então, só
por isso, ela entendia que a empresa de telefonia que ela defendia podia cobrar telessexo
livremente, tese com a qual não concordei e já havia sentenciado um bocado de processos.
Mas, 40 dias depois dessa audiência, essa mesma advogada entrou chorando no meu
gabinete. O seu pai estava num Hospital, internado, e o plano de saúde não autorizava certo
procedimento médico. Ela queria agora uma liminar para obrigar o plano de saúde a fornecer o
tratamento. Agora só lhe interessava Justiça.  ‐ O Senhor, disse ela, não pode nem   dar prazo
para o plano de saúde se manifestar sobre o pedido de liminar senão o meu pai morre! Agora
ela só queria Justiça. Não se importava mais com o Direito, nem com o processo.
Então, não entendo porque tanto alvoroço, porque dizer que algumas de minhas
decisões são diferentes.  “Ser diferente é normal”.
Fazer Justiça não é fazer Direito. Fazer Justiça é muito mais que isso. Fazer Direito, só
pelo Direito, sem se importar com Justiça, isso é mediocridade. Essa regra eu sempre recuso.
Fazer Direito com olhos na Justiça, isso é muito bacana, chega a ser genial em alguns casos. Dá
muita satisfação profissional ao magistrado sério. Mas fazer Justiça, só com olhos na Justiça,
isso tem um toque de Divino. É superior a tudo. Quando o Supremo Tribunal Federal julgou o
caso das cotas raciais, ele fez Justiça. Acho. Foi Justiça à unanimidade. Mas para a Folha de São
Paulo, o julgamento do STF foi medíocre, parecia “conversa de bar”, comentaram lá naquele
jornal. Cada um tem seu conceito do que é Justo. Talvez seja por isso que a jornalista lá de São
Paulo,   ao publicar recente   matéria sobre a minha forma de sentenciar, apenas pinçou uma
partezinha de uma sentença que ela entendeu de retirar do contexto e fez lá sua
hermenêutica do tititi em sua coluna semanal. Acho. Não li, porque não acompanho Facebook,
nem rede social alguma, mas fiquei sabendo agora. Mas ela tem lá também o seu direito
constitucionalmente assegurado de livre manifestação do pensamento, como eu acho que
também tenho o meu.    E se ela só conseguiu retirar aquele pedacinho que dizem que ela
retirou, talvez porque seu mundo todo seja aquilo mesmo. Ninguém faz suco de laranja tendo
só jabuticaba no inborná, dizia amigo meu, dos tempos de juventude. No espelho, ninguém é
mais feio ou mais bonito do que é. Ela havia me telefonado e perguntado se eu não tenho
medo de ser diferente, de ficar sozinho. Via‐se, pela pergunta, que ela não sabe nada que a
mineiridade se constrói é na solidão, na quietude. Além disso, quem tem colo de mãe não
pode se julgar sozinho, porque ela se dá de todo, o tempo todo. E se Justiça é colo de mãe, se
eu estou com ela, como poderia me julgar sozinho?
Cada caso é cada caso. É assim que penso e assim que trabalho. No ano passado
sentenciei, sem assessor, 3.618 processos. Quantos Juízes podem dizer que julgaram tantos
processos assim? Cada um desses 3.618 processos teve lá sua sentença. A maioria delas, com
certeza, bastou aplicar regra de Direito, porque a regra do Direito, para esses casos, se
amoldava às regras da Justiça. A Justiça tinha a mesma cara do Direito.    Alguns deles, a
sentença se distanciou um pouco da regra do Direito, porque prevaleceu a regra de Justiça. De
vez em quando aparece um caso que só deve receber regra de Justiça, com expressões e
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contornos da Justiça, com alguma formatação mínima exigida pela regra do Direito, como foi o
que causou alvoroço que não entendi. Mas vou pensar mais sobre isso.  
  Meu direito à livre manifestação do pensamento, contudo, acho que ainda tenho e
não é porque alguém possa se sentir incomodado com minha manifestação é que eu vou fazer
igualzinho aos outros. Ser diferente é normal.  
Não concordo que os processos nos Juizados Especiais,    em que tudo deveria ser
comandado pelos princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e
celeridade se transformem nesse inferno do Direito em que as peças processuais estão se
tornando. Mas quem se importa com princípios? Hoje quase tudo é só tese, tese e mais tese.
Injustiça no atacado. Direito pelo avesso. Já diziam os romanos na sabedoria criadora do
Direito: summum ius, summa injuria (excesso de Direito, excesso de injustiça). Nos processos
envolvendo grandes empresas, não se fala mais uma só palavra sobre fato, nem as partes se
preocupam de fazer provas documentais ou sobre fatos. Só teses. A oralidade foi para não sei
onde e a informalidade, ah, quando essa é usada pelo Juiz, ah, esse cara é diferente! Isso não é
normal! Talvez não seja normal mesmo. Quando atuei em processos de família, vi muitas
crianças sendo tratadas como coisas. Diziam os pais em conflito: “Fica com essa coisa aí com
você que eu pago a pensão”. Não foram poucas as vezes que tive a infelicidade de ouvir isso
em salas de audiências. No próprio caso em questão há expressão do gênero. Mas nos
processos envolvendo simples acidentes de veículos, estou vendo a todo dia alegações como
esta: ‐ Seu Juiz, esse carro é de estimação, tenho ele há muitos anos, é como se fosse gente da
família. Tem dano moral sim, porque o carro é como se fosse gente”. Gente é coisa. Carro é
gente. Talvez isso  tudo é que seja normal. Vou meditar mais, talvez eu seja mesmo diferente.
De uma coisa eu bem sei, de um ensinamento de um índio chucro e selvagem, não de
um jusfilósofo ou jurisconsulto. O que acontecer com a Justiça, isso afetará o homem. O
homem só pode existir em uma comunidade se houver Justiça, onde houver colo de mãe.
Mas também vou continuar matutando mais sobre isso."

É. Quem sabe, sabe.

(Mariana Pio)

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