domingo, 28 de outubro de 2012

Marasmo de 40ºC


A ressaca dominava meu pobre corpo há dois dias, e parecia ainda pior com o calor, além de fazê-lo pior também. Mal conseguia sair daquele muquifo pra fazer qualquer coisa, apesar da vontade de sair de dentro daquelas quatro paredes com cheiro de álcool e perfume dormidos, bitucas, latas e garrafas vazias espalhadas pelo chão. O ventilador de teto rodava meio cansado, já não ajudava tanto, e fazia uma bela dupla com o vinil rodando na vitrola, o que ainda me cedia a sensação de estar num filme do Tarantino. Nem um ventinho, nem uma brisinha. Só enrolávamos um cigarro atrás do outro, sem forças até pra conversar por muito tempo, mas em algum momento seria necessário abandonar ali e partir - provavelmente rumo ao boteco de costume. Era difícil criar qualquer expectativa que superasse muito esse marasmo quando o calor insuportável era só a cereja do bolo de decadência em que vivíamos nos últimos tempos.

(Mariana Pio)

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Não foi nesse voo.


Ele era mais um desses barbudos, de cabelo bagunçado, que se encontrava em um aeroporto, rumo a um destino qualquer.
Seu nome, eu nunca soube. Mas me atraia pelo simples fato de andar com roupas largadas, meio velhas, seu livro na mão e ouvindo alguma música que com certeza eu gostaria de ouvir também.
Tive muitas vontades desde o momento em que o vi pela primeira vez. Ele mal notava minha existência, mas queria muito perguntar se ele me daria um de seus fones de ouvido, para que eu pudesse adentrar em seu universo desconhecido.
Mas é difícil realizar tal façanha quando se está a beira de um colapso nervoso, com o coração batendo no céu da boca. Normalmente, minha tendência, nesses momentos, é congelar completamente.
Ele continuava lá, sentado, lendo seu livro. Matutei por alguns minutos o que falar ou não com ele. Aquela indagação mental mais parecia uma disputa do meu lado diabólico versus o meu lado de anjo. Em minha cabeça, essa indecisão pareceu durar uma eternidade, mas eu tinha um relógio que desmentia o meu ‘achometro’.
Em fim, tomei coragem e me levantei. Resolvi. Ia até lá falar com ele. Coloquei no rosto meu sorriso mais bonito. Quando me aproximava, apareceu o Murphy para me dar uma rasteira. 
Aquele moreno sedutor recebeu um beijo caloroso e inesperado (pelo menos por mim), desses tipo de filme, e o pior, o remetente desse beijo avassalador era uma morena, alta e de porte fino.
Voltei ao meu estado de congelamento. Fiquei ali, parada, vendo aquele amor todo se exalando, até o minuto em que eles se levantaram e foram embarcar naquele destino desconhecido. 
Passaram por mim. Ele trombou em meu ombro, e no mesmo segundo, se virou e me pediu desculpas com a voz mais doce que eu já havia ouvido. Não tive tempo de responder.
Continuei no mesmo lugar, com os pés concretizados no chão. De repente, em um estalo, voltei para a realidade e cai em desespero. Anunciavam a última chamada para o meu voo...


(Mariana Magalhães)


quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Não conto meus tocs pra ninguém


Colecionadora de corações, andava por aí com cara de quem nem liga, mas bem sabia que aos seus pés havia mais de duas mãos. O coração nasceu defeituoso, diziam uns; a cabeça está fora de moda, diziam outros. Mas só ela sabia do fardo de ter revelado seus tocs a alguém num passado não muito distante. Era o que culpava pelo fracasso de seu maior investimento. Ela se revelara demais, e agora se dava conta de que pouco valia guardar seu coração (e entregá-lo) a um único alguém quando é a ele que cabe a decisão de aceitá-lo ou não. O Gostar estava em baixa, pouca especulação, já não valia muito naqueles tempos. Seu valor dependia da disposição do alguém para lidar com ela. Concluiu que o melhor era guardar os tocs na própria loucura, antes que muitos soubessem que o volume do som tem que ser número par, e pulem da proa antes de zarpar. Gostar? Te desafio a me aceitar.

(Mariana P.)