segunda-feira, 11 de abril de 2011

O Amor é uma Falácia

"Eu era frio e lógico. Sutil, calculista, perspicaz, arguto e astuto – era tudo isso. Tinha cérebro poderoso como um dínamo, preciso como uma balança de farmácia, penetrante como um bisturi. E tinha imagem – só dezoito anos.
Não é comum ver alguém tão jovem com um intelecto tão gigantesco. Tomem, por exemplo, o caso do meu companheiro de quarto na universidade, Petey Bellows. Mesma idade, mesma formação, mas burro como uma vaca. Um bom sujeito, compreendem? Mas sem nada lá em cima. Do tipo emocional. Instável, impressionável. Pior do que tudo, dado a manias. Eu afirmo que a mania é a própria negação da razão. Deixar-se levar por qualquer nova moda que apareça, entregar-se a alguma idiotice só porque os outros a seguem, isto, para mim, é o cúmulo da insensatez. Petey, no entanto, não pensava assim.
Certa tarde, encontrei-o deitado na cama com tal expressão de sofrimento no rosto que o meu diagnóstico foi imediato: apendicite.
- Não se mexa. Não tome laxativo. Vou chamar o médico.
- Marmota – balbuciou ele.
- Marmota? – disse eu, interrompendo minha corrida.
- Quero um casaco de pele de marmota – gemeu ele.
Percebi que seu problema não era físico, mas mental.
- Por que você quer um casaco de pele de marmota?
- Eu devia ter adivinhado – gritou ele, dando tapas nas próprias têmporas.
- Devia ter adivinhado que eles voltariam com o Charlestom.
Como um idiota, gastei todo meu dinheiro em livros para as aulas e agora não posso comprar um casado de pele de marmota.
- Quer dizer – perguntei incrédulo – que estão mesmo usando casacos de pele de marmota outra vez?
- Todas as pessoas importantes da Universidade estão. Onde tem andado?
- Na biblioteca – respondi, citando um lugar não freqüentado pelas pessoas importantes da Universidade.
Ele saltou da cama e pôs-se a andar de um lado para o outro do quarto.
- Preciso conseguir um casaco de pele de marmota – disse, exaltando. – Preciso.
- Por que, Petey? Veja a coisa racionalmente. Casacos de pele de marmota são anti-higiênicos. Soltam pêlos. Cheiram mal. São pesados, são feios, são...
- Você não compreende – interrompeu ele com impaciência. É o que todos estão usando. Você não quer andar na moda?
- Não – respondi, sinceramente.
- Pois eu, sim – declarou ele. – Daria tudo para ter um casaco de pele de marmota. Tudo.
Aquele instrumento de precisão, meu cérebro, começou a funcionar a todo vapor.
- Tudo? – perguntei, examinando seu rosto com olhos semicerrados.
- Tudo – confirmou ele, em todo dramático.
Alisei o queixo, pensativo. Eu, por acaso, sabia onde encontrar um casaco de pele de marmota. Meu pai usava um nos seus tempos de estudante; estava agora dentro de um malão, no sótão da nossa casa. E, também por acaso, Petey tinha algo que eu queria. Não era dele, exatamente, mas pelo menos tinha alguns direitos sobre ela. Refiro-me à sua pequena, Polly Espy.
Eu há muito desejava Polly Espy. Apresso-me a esclarecer que meu desejo não era de natureza emotiva. A moça, não há dúvida, despertava emoções, mas eu não era daqueles que se deixam dominar pelo coração.
Desejava Polly para fins engenhosamente calculados e inteiramente cerebrais.
Cursava eu o primeiro ano de Direito. Dali a algum tempo, estaria me iniciando na profissão. Sabia muito bem a importância que tinha a esposa na vida e na carreira de um advogado. Os advogados de sucesso, segundo minhas observações, eram quase sempre casados com mulheres bonitas, graciosas e inteligentes. Com uma única exceção, Polly preenchia perfeitamente estes requisitos.
Era bonita. Suas proporções ainda não eram clássicas, mas eu tinha certeza de que o tempo se encarregaria de fornecer o que faltava. A estrutura básica estava lá.
Graciosa também era. Por graciosa, quero dizer, cheio de graças faciais. Tinha o porte ereto, a naturalidade no andar e a elegância que deixavam transparecer a melhor das linhagens. À mesa, suas maneiras eram finíssimas. Eu já vira Polly no barzinho da escola comendo a especialidade da casa – um sanduíche que continha pedaços de carne assada, molho, castanha e repolho – sem nem sequer umedecer os dedos.
Inteligente ela não era. Na verdade, tendia para o oposto. Mas eu confiava em que, sob minha tutela, haveria de tornar-se brilhante. Pelo menos, valia a pena tentar. Afinal de contas, é mais fácil fazer uma moça bonita e burra ficar inteligente do que uma moça feia e inteligente ficar bonita.
- Petey – perguntei - você ama Polly Espy?
- Acho-a uma boa garota – respondeu – mas não sei se chamaria isso de amor. Por quê?
- Você – continuei – tem alguma espécie de arranjo formal com ela? Quero dizer, vocês saem exclusivamente um com o outro?
- Não. Nos vemos seguidamente, mas saímos os dois com outros também. Por quê?
- Existe alguém – perguntei – algum outro homem de quem ela gosta de maneira especial?
- Que eu saiba, não. Por quê?
Fiz que sim com a cabeça, satisfeito.
- Em outras palavras, a não ser por você, o campo está livre, é isto?
- Acho que sim. Aonde quer chegar?
- Nada, nada – respondi com inocência, tirando minha mala de dentro do armário.
- Onde é que você vai? – quis saber Petey.
- Passar o fim-de-semana em casa.
Atirei algumas roupas dentro da mala.
- Escute – disse Petey, apegando-se, com força, ao meu braço – em casa, será que você não poderia pedir dinheiro ao seu pai, e me emprestar para comprar um casaco de pele de marmota?
- Posso até fazer mais do que isso – respondi, piscando o olho misteriosamente. Fechei a mala e saí.
- Olhe – disse ao Petey, ao voltar na Segunda-feira de manhã. Abri a mala e mostrei o enorme objeto cabeludo e fedorento que meu pai usara ao volante do seu Stutz Bearcat em 1925.
- Santo Pai! – exclamou Petey, com reverência. Mergulhou as mãos no pêlo do casaco, e depois o rosto.
- Santo Pai! – repetiu, umas quinze ou vinte vezes.
- Você gostaria de ficar com ele? - perguntei.
- Sim! – gritou ele, apertando a coisa sebosa contra o peito. Em seguida, seus olhos tomaram um ar precavido. – O que você quer em troca?
- A sua pequena – disse eu, não desperdiçando palavras.
- Polly? – sussurrou Petey, horrorizado. – Você quer a Polly?
- Isso mesmo.
Ele jogou o casaco para longe.
- Nunca! – declarou, resoluto.
Dei de ombros.
- O.K. Se você não quer andar na moda, o problema é seu
Sentei-me numa cadeira e fingi que lia um livro, mas continuei espiando Petey, com o rabo dos olhos. Era um homem partido em dois. Primeiro olhava para o casaco com a expressão de uma criança desamparada à vitrina de uma confeitaria. Depois dava-lhe as costas e cerrava os dentes, altivo. Depois voltava a olhar para o casaco, com uma expressão ainda maior de desejo no rosto. Depois virava-se outra vez, mas agora com tanta resolução. Sua cabeça ia e vinha, o desejo ascendendo, a resolução descendendo. Finalmente, não se virou mais; ficou olhando para o casaco com pura lascívia.
- Não é como se eu estivesse apaixonado por Polly – balbuciou.
- Só mesmo a namorando, ou coisa parecida.
- Isso mesmo – murmurei.
- Afinal, Polly significa o que para mim, ou eu para ela?
- Nada – respondi.
- Foi uma coisa banal. Nos divertimos um pouco, só isto.
- Experimente o casaco – disse eu.
Obedeceu. O casaco, lhe cobria as orelhas e caía até os sapatos. Ele parecia um monte de marmotas mortas.
- Serve perfeitamente – disse, contente.
Levantei-me da cadeira e perguntei, estendendo a mão:
- Negócio feito?
Ele engoliu em seco.
- Feito – disse, e apertou minha mão.
Saí com Polly pela primeira vez na noite seguinte. O primeiro programa teria o caráter de pesquisa preparatória. Eu desejava saber o trabalho que me esperava para elevar a sua mente ao nível desejado. Levei-a para jantar.
- Puxa, que jantar bacana! – disse ela, quando saímos do restaurante. Fomos ao cinema.
- Puxa, que filme bacana! – disse ela, quando saímos do cinema.
Levei-a para casa.
- Puxa, foi um programa bacana! – disse ela, ao me desejar boa noite.
Voltei para o quarto com o coração pesado. Eu subestimara gravemente as proporções da minha tarefa. A ignorância daquela moça era aterradora. E não seria o bastante apenas instruí-la. Era preciso, antes de tudo, ensiná-la a pensar. O empreendimento se me afigurava gigantesco, e a princípio me vi inclinado a devolvê-la a Petey. Mas aí comecei a pensar nos seus dotes físicos generosos e na maneira como entrava numa sala e segurava uma faca e um garfo, e decidi tentar novamente.
Procedi, como sempre, sistematicamente. Dei-lhe um curso de Lógica. Acontece que, como estudante de Direito, eu freqüentava na ocasião salas de Lógica, e portanto tinha tudo na ponta da língua.
- Polly – disse eu, quando a fui buscar para nosso segundo programa.
- Esta noite vamos até o parque conversar.
- Oh, que bacana! – respondeu ela.
Uma coisa deve ser dita em favor da moça: seria difícil encontrar alguém tão bem disposta para tudo.
Fomos até o parque, o local de encontros da Universidade, nos sentamos debaixo de um velho carvalho, e ela me olhou cheia de expectativa.
- Sobre o que vamos conversar? – perguntou.
- Sobre Lógica.
Ela pensou durante alguns segundos e depois sentenciou:
- Bacana!
- A Lógica – comecei, limpando a garganta – é a ciência do pensamento.
Se quisermos pensar corretamente, é preciso antes saber identificar as falácias mais comuns da Lógico. É o que vamos abordar hoje.
- Bacana! – exclamou ela, batendo palmas de alegria.
Fiz uma careta, mas segui em frente, com coragem.
- Vamos primeiro examinar uma falácia chamada Dicto Simpliciter.
- Vamos – animou-se ela, piscando os olhos com animação.
- Dicto Simpliciter quer dizer um argumento baseado numa generalização não qualificada. Por exemplo: o exercício é bom, portanto todos devam se exercitar.
- Eu estou de acordo – disse Polly, fervorosamente. – Quer dizer, o exercício é maravilhoso. Isto é, desenvolve o corpo e tudo.
- Polly – disse eu, com ternura – o argumento é uma falácia. Dizer que o exercício é bom, é uma generalização não qualificada. Por exemplo: para quem sobre do coração, o exercício é ruim. Muitas pessoas têm ordens de seus médicos para não se exercitarem. É preciso qualificar a generalização. Deve-se dizer: o exercício é geralmente bom, ou é bom para a maioria das pessoas. Senão, está-se cometendo um Dicto Simpliciter. Você compreende?
- Não – confessou ela. – Mas isto é bacana. Quero mais. Quero mais!
- Será melhor se você parar de puxar a manga do meu casaco – disse eu e, quando ela parou, continuei: - Em seguida, abordaremos uma falácia chamada de Generalização Apressada – Ouça com atenção: você não sabe falar francês, eu não sei falar francês, Petey Bellows não sabe falar francês. Devo portanto concluir que ninguém na Universidade sabe falar francês.
- É mesmo? – espantou-se Polly. – Ninguém?
Reprimi a minha impaciência.
- É uma falácia, Polly. A generalização é feita apressadamente. Não há exemplos suficientes para justificar a conclusão.
- Você conhece outras falácias? – perguntou ela animada. – Isto é até melhor do que dançar.
Esforcei-me por conter a onda de desespero que ameaçava me invadir. Não estava conseguindo nada com aquela moça, absolutamente nada. Mas não sou outra coisa senão persistente. Continuei.
- A seguir, vem o Post Hoc. Ouça: Não levemos Bill conosco ao piquenique. Toda vez que ele vai junto, começa a chover.
- Eu conheço uma pessoa exatamente assim – exclamou Polly. – Uma moça da minha cidade, Eula Becker. Nunca falha. Toda vez que ela vai junto a um piquenique...
- Polly, - interrompi, com energia. – É uma falácia. Não é Eula Becker que causa a chuva. Ela não tem nada a ver com a chuva. Você estará incorrendo em Post Hoc, se puser a culpa na Eula Becker.
- Nunca mais farei isso. – prometeu ela, contrita: - Você está bravo comigo?
- Não, Polly – suspirei. – Não estou bravo.
- Então conta outra falácia.
- Muito bem. Vamos experimentar as Premissas contraditórias.
- Vamos – gorjeou ela piscando os olhos alegremente.
Franzi a testa, mas continuei.
- Aqui vai um exemplo de Premissas Contraditórias. Se Deus pode fazer tudo, pode fazer uma pedra tão pesada que Ele mesmo não conseguirá levantar?
- É claro – respondeu ela imediatamente.
- Mas se Ele pode fazer tudo, pode levantar a pedra.
- É mesmo – disse ela, pensativa. – Bem, então acho que Ele não pode fazer a pedra.
- Mas Ele pode fazer tudo – lembrei.
Ela coçou sua cabeça linda e vazia.
- Estou confusa – admitiu.
- É claro que está. Quando as premissas de um argumento se contradizem, não pode haver argumento. Se existe uma força irresistível, não pode existir um objeto irremovível. Compreendeu?
- Conte outra dessas histórias bacanas – disse Polly, entusiasmada.
Consultei o relógio.
- Acho melhor pararmos por aqui. Levarei você para casa, e lá pensará no que aprendeu hoje. Teremos outra sessão amanhã de noite.
Depositei-a no dormitório das moças, onde ela me assegurou que a noitada fora realmente bacana, e votei desanimadamente para meu quarto. Petey roncava sobre sua cama, com o casaco de pele de marmota encolhido a seus pés como um enorme animal cabeludo. Por alguns segundos, brinquei com a idéia de acordá-lo e dizer que podia ter sua pequena de volta. Era evidente que meu projeto estava condenado ao fracasso. A moça tinha, simplesmente, uma cabeça à prova de Lógica.
Mas logo reconsiderei. Perdera uma noite, por que não perder outra? Quem sabe se alguma parte daquela cratera de vulcão adormecido que era a mente de Polly, algumas brasas ainda estivessem vivas. Talvez, de alguma maneira, eu ainda conseguisse abaná-la até que flamejassem. As perspectivas não eram das mais animadoras, mas decidi tentar outra vez.
Sentado sob o carvalho, na noite seguinte, disse:
- Nossa primeira falácia dessa noite se chama Ad Misericordiam. Ela estremeceu de emoção.
- Ouça com atenção – comecei. – Um homem vai pedir emprego. Quando o patrão pergunta quais as suas qualificações, o homem responde que tem uma mulher e seis filhos em casa, que a mulher é aleijada, as crianças não têm o que comer, não têm o que vestir nem o que calçar, a casa não têm camas, não há carvão no porão e o inverno se aproxima.
Uma lágrima desceu por cada uma das faces rosadas de Polly.
- Isto é horrível, horrível. – soluçou.
- É horrível – concordei – mas não é argumento. O homem não respondeu a pergunta do patrão sobre suas qualificações. Em vez disso, tentou despertar a sua compaixão. Cometeu a falácia Ad Misericordiam. Compreendeu?
- Você tem um lenço? – pediu ela, entre soluços.
Dei-lhe o lenço e fiz o possível para não gritar enquanto ela enxugava os olhos.
- A seguir – disse, controlando o tom de voz – discutiremos a Falsa Analogia. Eis um exemplo: Deviam permitir aos estuantes consultar seus livros durante os exames. Afinal, os cirurgiões levam radiografias para se seguirem durante uma operação; os advogados consultam seus papéis durante um julgamento; os construtores têm plantas que os orientam na construção de uma casa. Por quê, então, não deixar que os alunos recorram a seus livros durante uma prova?
- Pois olhe – disse ela, entusiasmada – esta é a idéia mais bacana que eu já ouvi há muito tempo.
- Polly – disse eu, com paciência. – O argumento é falacioso. Os cirurgiões, os advogados e os construtores não estão fazendo testes para ver o que aprenderam, e os estudantes sim. As situações são completamente diferentes e não se pode fazer analogia entre elas.
- Continuo achando a idéia bacana – disse Polly.
- Bolas! Murmurei. E prossegui, persistente. – A seguir, tentaremos a Hipótese Contrária ao Fato.
- Essa parece boa. - Foi a reação de Polly.
- Ouça: Se Mme. Curie não deixasse, por acaso, uma chama fotográfica numa gaveta junto com uma pitada de pechblenda, nós hoje não saberíamos da existência do rádio.
- É mesmo, é mesmo – concordou Polly, sacudindo a cabeça. – Você viu o filme? Eu fiquei louca pelo filme. Aquele Walter Pidgeon é tão bacana! Ele me faz vibrar.
- Se conseguir esquecer o Sr. Pidgeon por alguns minutos – disse eu, friamente – gostaria de lembrar que o que eu disse é uma falácia.
Mme. Curie teria descoberto o rádio de alguma outra maneira. Talvez outra pessoa o descobrisse. Muita coisa podia acontecer. Não se pode partir de uma hipótese que não é verdadeira e tirar dela qualquer conclusão defensável.
- Eles deviam botar o Walter Pidgeon em mais filmes – disse Polly. – Eu quase não vejo ele mesmo no cinema.
Mais uma tentativa, decidi. Mas só mais uma. Há um limite ao que podemos suportar.
- A próxima falácia é chamada Envenenar o Poço.
- Que bonitinho! – deliciou-se Polly.
- Dois homens vão começar um debate. O primeiros e levanta e diz: “Meu oponente é um mentiroso conhecido. Não é possível acreditar numa só palavra do que ele disser.” Agora, Polly, pense bem. O que está errado?
Vi-a enrugar a sua testa cremosa, concentrando-se. De repente, um brilho de inteligência – o primeiro que eu vira – surgiu em seus olhos.
- Não é justo! – disse ela com indignação. – Não é nada justo. Que chance tem o segundo homem se o primeiro diz que é um mentiroso, antes mesmo dele começar a falar.
- Exato! – gritei, exultante. – Cem por cento exato! Não é justo.
- O primeiro homem envenenou o poço antes que os outros pudessem beber dele. Atou as mãos do adversário antes da luta começar... Polly, estou orgulhoso de você.
- Ora – murmurou ela, ruborizando de prazer.
- Como vê, minha querida, não é tão difícil. Só requer concentração. É só pensar, examinar, avaliar. Venha, vamos repassar tudo o que aprendemos até agora.
- Vamos lá – disse ela, com um abando destruído na mão.
Animado pela descoberta de que Polly não era uma cretina total, comecei uma longa e paciente revisão de tudo o que dissera até ali. Sem parar, citei exemplos, apontei falhas, martelei sem dar tréguas. Era como cavar um túnel. A princípio, trabalho, suor e escuridão. Não tinha idéia de quando veria a luz ou mesmo se a veria. Mas insisti. Dei duro, cavouquei até com as unhas, e finalmente fui recompensado. Descobri uma fresta de luz. E a fresta foi se alargando até que o sol jorrou para dentro do túnel, clareando tudo.
Levara cinco noites de trabalho forçado, mas valera a pena. Eu transformei Polly em uma lógica, e a ensinara a pensar. Minha tarefa chegara a bom termo. Fizera dela uma mulher digna de mim. Estava apta a ser minha esposa, uma anfitrioa perfeita para as minhas muitas mansões, ser a mãe adequada para os meus filhos privilegiados.
Não se deve deduzir que eu não sentia amor pela moça. Muito pelo contrário. Assim como Pigmalião amara a mulher perfeita, que moldara para si, eu amava a minha. Decidi comunicar-lhe os meus sentimentos no nosso encontro seguinte. Chegara a hora de mudar nossas relações, de acadêmicas para românticas.
- Polly – disse eu, - na próxima vez que nos sentarmos sob o carvalho não falaremos de falácias.
- Puxa! Disse ela, desapontada.
- Minha querida – hoje é a sexta noite que estamos juntos. Nos demos esplendidamente bem. Não há dúvida de que formaremos um bom par.
- Generalização Apressada! – exclamou ela, alegremente.
- Perdão – disse eu.
- Generalização Apressada – repetiu ela. – Como é que você pode dizer que formamos um bom par baseado em apenas cinco encontros?
Dei uma risada, divertido. Aquela criança adorável aprendera bem suas lições.
- Minha querida – disse eu, dando um tapinha tolerante em sua mão. – Cinco encontros são o bastante. Afinal, não é preciso comer um bolo inteiro para saber se ele é bom ou não.
- Falsa Analogia – disse Polly prontamente. – Eu não sou um bolo, sou uma pessoa.
Dei outra risada, já não tão divertida. A criança adorável talvez tivesse aprendido sua lição bem demais. Resolvi mudar de tática. Obviamente, o indicado era uma declaração de amor simples, direta e convincente. Fiz uma pausa, enquanto meu potente cérebro selecionava as palavras adequadas. Depois comecei.
- Polly, eu a amo. Você é tudo no mundo para mim. É a lua e as estrelas e as constelações no firmamento. Por favor, minha querida, diga que será minha namorada, senão minha vida não terá mais sentido. Enfraquecerei, recusarei a comida, vagarei pelo mundo aos tropeções, um fantasma de olhos vazios.
“Pronto”, pensei, “está liquidado o assunto”.
- Ad Misericordiam – disse Polly.
Cerrei os dentes. Eu não era Pigmalião. Era Frankestein, e meu suspiro me tinha pela garganta. Lutei desesperadamente contra o pânico que ameaçava invadir-me. Era preciso manter a calma a qualquer preço.
- Bem, Polly – disse, forçando um sorriso – não há dúvida de que você aprendeu bem as falácias.
- Aprendi mesmo – respondeu ela, inclinando a cabeça com vigor.
- E quem foi que as ensinou a você, Polly?
- Foi você.
- Isso mesmo. E portanto você deve alguma coisa, não é mesmo minha querida? Se não fosse por mim, você nunca saberia o que é uma falácia.
- Hipótese Contrária ao Fato – disse ela sem pestanejar.
Enxuguei o suor do rosto.
- Polly, - insisti, com voz rouca – você não deve levar tudo ao pé da letra. Estas coisas só têm valor acadêmico. Você sabe muito bem que o que aprende na escola nada tem a ver com a vida.
- Dicto Simpliciter – brincou ela, sacudindo o dedo na minha direção.
Demorei bastante. Levantei-me num salto, berrando como um touro.
- Você vai ou não vai me namorar?
- Não vou – respondeu ela.
- Por que não? – exigi.
- Porque hoje à tarde prometi a Petey Bellows que seria namorada dele.
Quase caí para trás, fulminado por aquela infâmia. Depois de prometer, depois de fecharmos negócio, depois de apertar minha mão!
- Aquele rato! – gritei chutando a grama. – Você não pode sair com ele, Polly. É um mentiroso. Um traidor. Um rato.
- Envenenar o Poço – disse Polly. – E pare de gritar. Acho que gritar também deve ser uma falácia.
Com uma admirável força de vontade, modulei minha voz.
- Muito bem –disse. – Você é uma lógica. Vamos olhar as coisas logicamente. Como pode preferir Petey Bellows? Olhe para mim: um aluno brilhante, um intelectual formidável, um homem com o futuro assegurado. E veja Petey: um maluco, um boa-vida, um sujeito que nunca saberá se vai comer ou não no dia seguinte. Você pode me dar uma única razão lógica para namorar Petey Bellows?
- Posso, sim. – declarou Polly. – Ele tem um casaco de pele de marmota."

(Max Shulmon)

Um comentário:

  1. Sensacional!!!
    O aprendiz que superou o mestre. hahaha
    Como diria Fernanda Takai, "nunca subestime uma mulherzinha"!

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