segunda-feira, 6 de junho de 2011

Agravo de Instrumento

Decisão do Desembargador José Luiz Palma Bisson, do Tribunal de Justiça de
São Paulo, proferida num Recurso de Agravo de Instrumento ajuizado contra
despacho de um Magistrado da cidade de Marília (SP), que negou os
benefícios da Justiça Gratuita a um menor, filho de um marceneiro que
morreu após ser atropelado por uma motocicleta. O menor ajuizou uma ação de
indenização contra o causador do acidente pedindo pensão de um salário
mínimo mais danos morais decorrentes do falecimento do pai.

Por não ter condições financeiras para pagar custas do processo o menor
pediu a gratuidade prevista na Lei 1060/50. O Juiz, no entanto, negou-lhe o
direito, dizendo não ter apresentado prova de pobreza e, também, por estar
representado no processo por "advogado particular".

A decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo a partir do voto
do Desembargador Palma Bisson é daquelas que merecem ser comentadas,
guardadas e relidas diariamente por todos os que militam no Judiciário.

Transcrevo a íntegra do voto:

“É o relatório.

Que sorte a sua, menino, depois do azar de perder o pai e ter sido vitimado
por um filho de coração duro - ou sem ele -, com o indeferimento da
gratuidade que você perseguia. Um dedo de sorte apenas, é verdade, mas de
sorte rara, que a loteria do distribuidor, perversa por natureza, não
costuma proporcionar. Fez caber a mim, com efeito, filho de marceneiro como
você, a missão de reavaliar a sua fortuna.

Aquela para mim maior, aliás, pelo meu pai - por Deus ainda vivente e
trabalhador - legada, olha-me agora. É uma plaina manual feita por ele em
paubrasil, e que, aparentemente enfeitando o meu gabinete de trabalho, a
rigor diuturnamente avisa quem sou, de onde vim e com que cuidado extremo,
cuidado de artesão marceneiro, devo tratar as pessoas que me vêm a
julgamento disfarçados de autos processuais, tantos são os que nestes vêem
apenas papel repetido. É uma plaina que faz lembrar, sobretudo, meus caros
dias de menino, em que trabalhei com meu pai e tantos outros marceneiros
como ele, derretendo cola coqueiro - que nem existe mais - num velho fogão
a gravetos que nunca faltavam na oficina de marcenaria em que cresci; fogão
cheiroso da queima da madeira e do pão com manteiga, ali tostado no
paralelo da faina menina.

Desde esses dias, que você menino desafortunadamente não terá, eu hauri a
certeza de que os marceneiros não são ricos não, de dinheiro ao menos. São
os marceneiros nesta Terra até hoje, menino saiba, como aquele José, pai do
menino Deus, que até o julgador singular deveria saber quem é.

O seu pai, menino, desses marceneiros era. Foi atropelado na volta a pé do
trabalho, o que, nesses dias em que qualquer um é motorizado, já é sinal de
pobreza bastante. E se tornava para descansar em casa posta no Conjunto
Habitacional Monte Castelo, no castelo somente em nome habitava, sinal de
pobreza exuberante.

Claro como a luz, igualmente, é o fato de que você, menino, no pedir pensão
de apenas um salário mínimo, pede não mais que para comer. Logo, para quem
quer e consegue ver nas aplainadas entrelinhas da sua vida, o que você nela
tem de sobra, menino, é a fome não saciada dos pobres.

Por conseguinte um deles é, e não deixa de sê-lo, saiba mais uma vez, nem
por estar contando com defensor particular. O ser filho de marceneiro me
ensinou inclusive a não ver nesse detalhe um sinal de riqueza do cliente;
antes e ao revés a nele divisar um gesto de pureza do causídico. Tantas,
deveras, foram as causas pobres que patrocinei quando advogava, em troca
quase sempre de nada, ou, em certa feita, como me lembro com a boca cheia
d'água, de um prato de alvas balas de coco, verba honorária em riqueza
jamais superada pelo lúdico e inesquecível prazer que me proporcionou.

Ademais, onde está escrito que pobre que se preza deve procurar somente os
advogados dos pobres para defendê-lo? Quiçá no livro grosso dos
preconceitos...

Enfim, menino, tudo isso é para dizer que você merece sim a gratuidade, em
razão da pobreza que, no seu caso, grita a plenos pulmões para quem quer e
consegue ouvir.

Fica este seu agravo de instrumento então provido; mantida fica, agora com
ares de definitiva, a antecipação da tutela recursal.

É como marceneiro que voto.

JOSÉ LUIZ PALMA BISSON -- Relator Sorteado”

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